Armando acordou cansado, voltou-se para o outro lado com vontade de não sair da cama….
Mas tinha que ser, não podia chegar atrasado, logo hoje que o chefe de sector vinha ter com ele… o chefe de sector …o João Rocha!
Trinta anos mais novo que ele, e cheio de novas estratégias de marketing, e com uma conversa que enjoava Armando, que nesta labuta já andava há muitos, muitos anos.
Arrastou-se até à casa de banho, e sem vontade de tomar banho, sem vontade de nada, nem duche tomou.
Disfarçou qualquer coisa com uma lavadela de cara e um desodorizante barato.
Armando já tinha conhecido melhores dias na Indústria Farmacêutica, não era aumentado já lá iam 5 anos, e pacientemente, observava o desfile de gente tão nova a ser promovida a cargos, para os quais Armando não lhes reconhecia competência, com ordenados, escandalosamente chorudos.
E tanto lhe custou a adaptar-se a tantas coisas novas, e à degradação total, da Indústria Farmacêutica, que foi observando tristemente na sua profissão. Esta sua profissão, que tanto o tinha feito orgulhar-se de si mesmo, no tempo em que se sentia preciso.
Por isso Armando não tinha nenhuma vontade de passar o dia com o seu chefe João Cabral, tinham tão pouco para dizer um ao outro.
Armando pressentia que a conversa daquele dia, que começou tão preguiçosamente, não iria ser agradável para o seu lado, isto porque recordava o discurso do director geral de vendas na última reunião de ciclo, onde frisava a todo o instante, a necessidade duma remodelação de estratégias e na indispensável injecção de juventude no “campo”! Iriam recrutar delegados novos…
Armando podia adivinhar o que lhe esperava e por isso, como num acto de protesto infantil, recusou-se a tomar banho naquela manhã.
Sem se barbear queria confrontar o seu chefe que tinha quase a mesma idade que o seu filho Henrique, que estava quase a acabar a faculdade.
E o que ele tinha sofrido para que o filho ali chegasse, mas pelo menos tinha a certeza que nunca o seu filho, faria as mesmas figuras idiotas, que o João Cabral fazia com o maior à vontade.
João Cabral, que de instrução era parco e só se sabia valer, e bem, da sua esperteza meio mesquinha e sem escrúpulos.
Cansado, depois de ter dormido tantas horas, preparava-se para tudo naquele dia.
Armando não respondia, geralmente não respondia e apenas abanava a cabeça como quem concorda com tudo o que ouve.
Tal como previra o dia ia ser quente de temperatura e humores…
Armando lembrava-se do tempo em que visitava médicos especialistas nos seus consultórios, fazia amizade com as secretárias e era sempre tão bem recebido por todos eles. Nessa altura havia tempo para conversar, para explicar e até para deixar algumas amostras de medicamentos, que os médicos guardavam, muitas vezes para dar a doentes mais necessitados e que pouco dinheiro tinham para gastar na farmácia…. O pensamento vagueava por esses tempos que não diziam nada a João Cabral…esses tempos, em que eram poucos na profissão … esses tempos em que a sua profissão era ainda, tão digna…
Pensava em tudo isto enquanto observava os maneirismos de João, o seu sorriso de plástico e as suas operações de charme, daquele mais baratinho, mas que encantava as doutoras ali do sítio, já entradas na idade e querendo rejuvenescer a todo o custo, pintando o cabelo e as unhas de cores estranhas.
Sabia que o laboratório, tinha verba disponível para levar médicos daquela zona ao congresso internacional, que naquele ano seria nas Filipinas, o convite estendia-se à família, pelo menos a um acompanhante.
Fazendo contas de cabeça, Armando concluía que a zona subiria consideravelmente em cota de mercado, a sua Sinvastatina ia sobressair…afinal o João estava ali para o ajudar, ou adiar a sua reforma antecipada… pensada nisto, nauseou-se e não conseguiu disfarçar um enorme desconforto, que o fez afastar-se de João com uma desculpa qualquer, foi comprar cigarros…
Pelo menos uns minutos, tinha que arejar sozinho.
Terminada a manhã, depois das visitas, dos convites e do “negócio” feito, foram almoçar.
Armando queria comer depressa por não suportar olhar de frente a cara de João durante muito tempo.
E, recordou os tempos em que reivindicava os direitos dos trabalhadores com uma força desmesurada, em que combatia a corrupção e que lutava mesmo na clandestinidade contra o fascismo, o tráfico de influências e todas essas lutas que quase se obrigou a esquecer…será que João Cabral, no cimo dos seus ridículos sapatos de biqueira quadrada, sabia o que isso era?...será que passava valores de liberdade e responsabilidade aos seus filhos..?
Perguntava-se mentalmente, sorrindo e adivinhando logo a resposta.
Nem abordou nenhum assunto com João Cabral, simplesmente assentia com a cabeça com um sorriso mascarado de satisfação e um sentimento oculto de nojo desconsideração pelo seu jovem chefe, que brilharia com os seus números no final do ano.
A sinvastatina do Armando iria vender mais que nunca graças aquela gente das Filipinas….
Já quase ao anoitecer entrou em casa, era Verão esteve demasiadas horas na forçada companhia do seu chefe, e voltava agora derreado, já sem força para lutar, para falar, ou mesmo tentar ensinar qualquer coisa.
Aquele seu fantástico chefe, tanto que ele ainda não sabia.
Triste concluiu que não valia a pena…que estava acabado para aquela profissão, pela idade, pela inadaptação, por tudo e mais alguma coisa.
Se calhar voltaria para a luta que tinha deixado a meio, já com quase 60 anos, 30 deles dedicados aquele laboratório, só tinha pena de não sair em glória, o João Castro, tinha-lhe tirado esse prazer com o dia de hoje, quando resolveu subir as vendas da zona, na forma mais execrável.
Felizmente tudo acabaria em breve.
Entrou em casa, e com vergonha de si…naquele dia, deu um beijo tímido ao Henrique, desejando que ele soubesse lutar até ao fim, e que em nenhum momento se deixasse apanhar nas malhas da manipulação.
Sonhador… como sempre!
Jantaram alegremente pescada frita com arroz de grelos, tudo bem preparado e com especial carinho, pela Henriqueta, sua mulher de toda a vida, companheira de luta, de vitórias e derrotas, e que também ela, queimava as pestanas todos os dias num organismo público, onde também ela… já pouco podia mudar…
4 comentários:
Gostei do texto!! Um bom domingo!! Beijinho
Boa tarde! Bom resto de domingo! Adorei este texto. Next!!! :-)
Bjs
Boa noite,
um retrato dos nossos dias.
Sinto-me como o Armando... acordo cansado.
Depois, vou continuando assim, até que passa.
Beijo
obrigada!! um cheirinho do livro....:)
agora acaba a saga da informação médica... por hora :)
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