quinta-feira

Bebíamos notas e comíamos cigarros.


_ Só gosto duma , desse álbum…só gosto duma !
_ Já sei disso , até era estranho que gostasses de todas …

Eu só gostava daquelas que podia sentir.

_Só gosto duma e, se me deixares,  oiço-a vezes e vezes seguidas, vezes e vezes sem conta.
_ …e estragas a agulha , já é a segunda agulha que compro esta semana .
-ok…já não oiço mais … nem toco no gira discos .

Passávamos mais uma tarde de verão , num andar alto , num prédio alto, dos Olivais .

Eu sentava-me num sofá de veludo, com franjas de cetim. Fechava os olhos e ouvia as músicas que saiam quase sem “batatas fritas “,do vinil que rodava sem soluços num prato prateado , num gira discos cromado .

Quando abria os olhos ,  assim devagarinho, passeava-os  pelas paredes da sala repletas de figuras, pratos e outros objectos vindos de África e de  Macau. As cores escuras e o ar pesado de fumo, tornavam tudo demasiado amarelado, quase acastanhado.

O verão nos Olivais era sempre quente, preguiçávamos só para não sairmos à rua na torreira do Sol .

_Vamos ficar aqui…?
_Não sei , onde queres ir ?
_Está muito calor , ficamos aqui .
_A que horas chegam os teus pais ?
_Os meus pais foram para Lagos, esta semana.  

Casa vazia ! Não podia ser melhor….

_Não vão cá estar ?!
_Não…
_E se fizéssemos uma festa aqui em casa ? Arrastávamos os móveis e abríamos as portas da varanda , comprávamos uma cervejas, sei lá ...umas bebidas
_Não sei…
_Não sabes ?! está um calor de morrer e estamos de férias, acho que ainda cá  está toda a gente, nos Olivais  
.Vamos ver se o Pimenta está em casa , telefona-lhe ..
_Já liguei lá para casa , ninguém atende.

Naquele tempo não havia telemóveis, mal sabíamos que quando aparecessem, seriam como um enorme olho na nossa testa!

_Embora ver se o pessoal aqui do prédio está cá .

Corremos o prédio todo. Chamámos o Zé, o João, os gémeos, o Luis, a namorada do Luís  a Rosa,  a Margarida , o irmão da Margarida , o Diogo, e mais nem sei quantos, todos os  que nos íamos lembrando.

Ao fim da tarde tínhamos reunido tanta gente, tantos  que mal cabiam naquela sala, alguns eu nem conhecia, todos dentro dum andar alto, num prédio alto, nos Olivais .

Com a pressa e toda aquela  excitação, de chamar toda a gente para a festa, esquecíamo-nos de comprar comidas e bebidas..

_ Não comprámos nada para beber …nem para comer…. E agora? Já cá está toda a gente …

Arrastávamos os sofás pesados, tirávamos das paredes os pratos chineses que tinham vindo lá não sei de onde , e eram muito valiosos, as estatuetas africanas, que ao mínimo toque se podiam partir em pedaços  .

Arranjávamos cinzeiros,  improvisados em taças de doce, não podíamos partir os cinzeiros lá de casa .
Começavam a chegar , de mãos nos bolsos, não traziam nada, só traziam calor, sorrisos e gargalhadas.

Só queríamos gargalhar a noite toda, e ouvir os LPs novos numa agulha sem “batatas fritas”.

Naquela noite o gira discos podia berrar, nem nos importávamos com os vizinhos .

_Não comprámos nada para comer…nem para beber…e ninguém trás nada

Eu falava baixinho e pouco preocupada, para mim já me bastava ficar sentada naquele sofá de veludo, de olhos fechados ouvindo o barulho de toda a gente , o barulho das vozes dos risos e sorrisos , tornavam-se música , assim… tão facilmente.

Precisava de pouco, precisávamos de pouco para sorrir.

_ Estou a arranjar a música...espera…

Eu esperava, todos esperávamos.

Estavam todos na varanda, o calor era muito, nos Olivais.

Comecei a pensar que aquela mini varanda podia não aguentar com tanta gente, e imaginei sem querer, uma queda colectiva de gente que gargalhava sem razão, sempre de cigarro na mão.

_Não comprámos nada para comer…nem para beber…
_Já ouvi! Parece que só tu é que estás preocupada com isso !

E estava , mas não muito, para mim a festa tinha que ter comida ..e bebida, para eles bastava que tivesse muito fumo e muita música .

 Bebíamos notas e comíamos cigarros.

_ isto hoje vai tocar alto! Muito alto!

As gargalhadas vindas da varanda, soavam-me quentes e espalhavam-se nas ondas de calor , vindo da rua . Começava a anoitecer, a melhor hora do dia.

Os cigarros e os fumos, passavam de mão em mão.

Alguém pedia uma música, depois outra… e outra…e mais outra, falavam todos ao mesmo tempo.
Eu só queria ouvir uma, para poder fechar os olhos e construir tudo à minha maneira, assim cá dentro de mim.

O meu olhar era distante, sempre foi assim. Ainda hoje mo disseram, que estava igual, estava o mesmo olhar.
Olhar contraditório, de quem não está ali, mas marca uma presença indelével . Nunca me apercebi que era assim.

_Mete o disco a tocar! Mete música! Diziam quase aos berros.
_não temos nada para comer… nem para beber…

O disco tocava alto, era o último dos “Cars”.

 Já nem me lembro se tinha vindo de Londres ou não. Muitos vinham de Londres, encomendados, não estavam nas discotecas. No tempo em que as discotecas ainda eram lojas onde se vendiam discos, LPs , Singles e cassetes.

_Põe aquela que eu gosto… Como é que se chama? “Drive”… chama-se “Drive”…acho eu…
_Agora não. Deixa o disco tocar todo, não posso estar sempre a mexer na agulha, risco o disco todo .
-E quantas faltam para a que eu quero ?
_Não sei.

Ninguém ligava à nossa conversa monocórdica, ninguém tinha fome.

 Começavam a ter sede.

_não há nada para beber?
_Não. Não comprámos nada , e vocês também não trouxeram nada, isto foi assim tudo à última hora… está aqui imensa gente …o Pimenta não veio?
_Deve estar a chegar.

Eu fechava os olhos, baralhada, esperava pela música que queria.

“Who’s goanna tell you when…it’s too late..? ……………..“

_Teresa queres fumar?
_Não.

Dizia sempre que não.

_Não há nada para beber?
_Não sei, já nem quero saber, pergunta ao Fernando.

Começava a tocar a “minha” música ….

“Whos gonna come around, when you break….you can’t go on, thinking, nothing’s wrong….whos gonna drive you….”

Repetia a música na minha cabeça, vezes sem conta, cantarolava calada enquanto me falavam e eu fingia ouvir.

_Fernando, não há nada para comer… nem beber…

De repente, levanta-se do chão, num pulo enorme.
_Tenho uma ideia! O meu pai tem dezenas de garrafas de whisky na despensa… Ele não bebe …não gosta … só gostam de gim…E todos os anos lhe oferecem imensas lá na Manutenção.

_onde? Perguntavam quase em coro
_Ali na cozinha, na despensa, lá em cima nas últimas prateleiras

E correram para despensa da cozinha, só lá cabia uma pessoa de cada vez, com um banco começaram a tirar as garrafas das últimas prateleiras, aquelas que estavam mais lá para o fundo.

_Se tirar-mos as lá de trás, lá do fundo, o meu pai não dá por nada. Atenções que elas estão numeradas, tirem as com o número mais alto.

Ninguém ligou aos números, e tiraram a s garrafas à toa .
Não comemos, mas bebemos!

Já rolavam garrafas pelo chão, umas cheias, outras vazias, outras meio cheias…

_Mas…não temos nada para comer…
_ninguém quer comer Teresa!

Calei-me, e disfarçadamente fui ao gira discos e coloquei a agulha no princípio da “minha “música … sem ninguém dar por isso

“Who’s goanna come around, when you break….you cant go on, thinking, nothing’s wrong….who’s goanna drive you….”……

Não faltou muito para que já não ouvissem nada .

Bebiam whisky puro, desalmadamente, iam adormecendo. Uns nos sofás, outros no chão, outros encostados a si próprios… outros uns aos outros.

Trocavam beijos sem se aperceberem, de olhos fechados para não se verem…

E sem ninguém ver nem ouvir… eu já podia devorar a minha música

“Who’s goanna come around, when you break….you can’t go on, thinking, nothing’s wrong….who’s goanna drive you….”……

Olhava à minha volta … Estavam todos espalhados pelo chão, no meio de garrafas amareladas…

O Pimenta não veio.
“…who’s goanna drive you home ….tonight   .”……
TMQueiroz

7 comentários:

Moonlight disse...

Aaaaaaah...como me conseguis-te transportar para a minha adolescencia...a musica que eu mais amava!
Comida?!Bebida?!Nada disso importava...o que contava era as gargalhadas,os amigos juntos,os namorados,e a mera festa...era lindoooo!
Obrigada por me ter feito viajar pela minha adolescência!

Bj com luar

Mar Arável disse...

Quando a ficção se torna realidade

apetece amar melhor as palavras

mfc disse...

Li e vi a festa toda!
As conversas sem interlocutor, a bebida de gente que a não sabia beber...!
Mas era assim que aprendíamos e que as coisas na realidade se passavam.

Eric Bustamante disse...

Adorei o post. Já participei de festas assim na juventude.

Graça Pereira disse...

Conversas malucas de quem se quer encontrar...ou talvez não. Mas pelo menos tu degustaste a tua música e tenho a certeza que encontraste o teu mundo.
Beijocas
Graça

Paulo Roberto Wovst Leite disse...

Vidas em profusão...
Lindo.

Bjs
Paulo

Julliany kotona disse...

Gostei do blog,gostei tanto que resolvi ficar já estou a te seguir bjks de boa semana.