refugiava-se na sua arte - de olhos ardentes - lacrimejava cansaço - pensou que sentando-se só iria ver meias cores - de tudo o que lhe parecesse colorido - de quando em vez sentia-se assim, descolorada e lacrimejante de cansaços revividos
e sem cor - pensou que o odor também nunca mais lhe chegaria - odor de relva fresca - de heras escondidas - de madeira envelhecida.
refugiava-se a céu aberto - nem se sentava - nem se lembrava… já quase não se queria
esquecia-se - por querer esquecer - obrigava-se a não lacrimejar e cansava-se - concentrava-se naquela arte que não sabia ter mas tentava - tentava sempre que o aperto chegava- tentava sempre que os seus dedos lhe fervilhavam.
inspirada em tanto - não fazia quase nada
acabava (agora) de pensar - cerrava o pensamento - cerrava os olhos - lacrimejava e descolorava-se
finalmente sentou-se e sentiu a madeira áspera - o vento fresco que (só) lhe pareceu uma rajada de nada
sentou-se de pernas cruzadas - desajeitada - pensou que já nem se sabia sentar por aí
olhou e viu cor num canto qualquer - não sabia por onde ir
tentava segurar o cigarro entre dentes
inspirava o fumo e deixava que se soltasse
dilatando as narinas - escrevia num teclado apagado
apagava pedaços de vida - mal se vêem - estão lá, adivinha-se o sítio
o fumo ardia-lhe nos olhos - lacrimejava e não tinha mão que lhe secasse a face
ocupava os dedos - dedilhando um teclado que se esbatia de uso - a cinza caí-lhe em cima do peito
agora não podia parar - nunca mais poderia parar.
os olhos ardiam - e não viam mais nada para além das sumidas letras de um teclado usado - tão usado quanto ela.
tinha-o usado na vida e gastava-lhe o tempo
usava-se a si mesma, para tentar reescrever vida.
escrevia-a em pedacinhos - pequenas frases - letras escondidas em palavras demasiado rebuscadas
nessas alturas pensava que a vida não se podia voltar a pintar - a tinta caía com o tempo - por si só
remenda-se ali - pincelava-se acolá
imperfeita
em paredes gastas- teclas usadas e pinturas maltratadas - a vida corria plana - sem círculos
o fumo amarelecia as paredes da sala - a cinza caía-lhe em cima
no meio de nada
fazia-se em pó
e
não a preocupava.
vasculhou lá pelos confins das caixas de memórias - raspou o pó instalado ao longo de tanto tempo soprou com um sopro quente e desfez a névoa poeirenta que se espalhou no ar comprimido. pelas lentes de velhos óculos encontrou vestígios de tudo o que havia tentado esquecer soprou outra vez desta vez com mais força queria voltar a ver o que lá tinha deixado as letras confundiam-se e não se liam - as palavras deixaram de ser conexas andava em passos curtos percorrendo as páginas daquela sua casa catalogava - admirava - lembrava e voltava a querer tentar esquecer voltou a olhar-se - ao volante de um carro alugado galgando veredas numa ilha emprestada conduzia embalada pela música que tocava continuamente e sem paragens que a deixassem respirar terminava e voltava ao início era assim o sentir. o sentir não parava- rebolava - corria - andava - sonhava e dormitava e repetia-se em caixas arrecadadas desfolhava memórias guardadas afundou as mãos, procurando corpo no sentir tacteava bolas leves feitas de esferovite. segurava a ponta da página que lhe escorregava entre os dedos- procurava outra ao acaso pelo acaso da sua vida - nunca mais a conseguiria voltar a desfolhar caminhava de pantufas quentes porque lhe arrefeciam os pés as mãos brincavam com o suave tacto da névoa já pensada deixou de ver deixou de se ler poisou os óculos de lentes de aumentar comprimiu os lábios e cerrou os dentes parou de respirar por momentos talvez assim o sentir voltasse a invadir um espaço fechado tentava dar asas ao sentir, e o sentir, já sentido, não voava nem se lia. voltou a fechar tudo num livro aberto ao acaso que já não se desfolhava abriu os olhos e sorriu calçando sapatos de caminhar. sacudiu as mãos... poisou as lentes aumentar
já sem formato de qualquer corpo
sem já estar por ali sentada, desembrulho-me de panos
húmidos
segui , corroendo pés descalços
frescos
destapados de panos tombados
que por ali ficaram
sentados em pau
já sem corpo que envolvessem
manchados de amor desfeito
já sem formatos de mim
num trono desamparado
perfeito
repousado
embrulhado em panos que já não voam
pesados
descansam-me desamores
sentados em nada
já não caem
já sem formato de qualquer corpo
desembrulho-me do peso dos panos
caídos
sentados
amarrotados
manchados
molhados de amor desfeito
segui por aí ...
corroendo solas de pés, pisadas.
Teresa Maria Queiroz - Dezembro 2011
Foto - Eduardo Rosas
domingo
sempre tive medo que os meus pés se entrelaçassem nos raios das rodas das bicicletas
sempre tive medo que o selim se soltasse eu caísse por ali abaixo, sem ter onde me agarrar.
nunca soube endireitar o "guiador", fugia-me por todos os lados
eram sempre demasiado grandes para mim
nunca entendi para que servia o ferro enorme, entre o selim e aquela espécie de volante
as bombas de ar nunca me fizeram suster a respiração
os carretos das rodas estavam sempre cheios de um óleo viscoso e peganhento, seria esse óleo que teríamos que limpar o resto da vida ?
nunca me deixei descer uma ribanceira ...assim por ali abaixo....
agarrava-me com força aos travões e não saía do mesmo sítio, as mão ficavam vermelhas , de tanta força que fazia
nunca entendi porque me haveria de equilibrar em duas rodas
seria vida assim mesmo, equilíbrio inseguro---
não andava ..nem de olhos fechados
não andava na estrada
podia ser atropelada
nunca quis
sempre tive medo que os meus pés se entrelaçassem nos raios das rodas das bicicletas ....
escrevo-te sem palavras
só porque palavras
já não nos sabem falar
figuro-te rabiscando o que me soa
....
se olhares bem, consegues ouvir o som que não tem
não me lês por não saberes
tentas ouvir-me
e
escrevo-te desconexo
em palavras desarticuladas
desemparelhadas
revoltadas
figuradas
não me lês !
vês ?
somos dois, de costas voltadas, mergulhados em indefinidas palavras
resta-nos a cor
o rosa choca-nos
na nossa impávida sabedoria
o rosa choca-nos
e
embala-nos em palavras que já não conseguimos ouvir
agora vê ...como nos envolvem
olha só...
e
sente-me sem me ouvires
sem notas de som , seguidas e continuadas
qualquer som que possas construir
assim...só ...
sem palavras desconexadas
sem me saberes ler, em figuras desenhadas
ouve-me !
abre os olhos e fecha-os
lacrimejados de rosa choque
chora-me!
numa lente reviramos o Sol , desfocamos para nos focarmos
em luz directa
numa lente embalamos a alma , afagando-a para que nos conforte
em sombras ténues
numa lente de alma reviramos a chama
nesgas de luz que aumentamos
destapando óculos de aumentar
reduzimos o olhar , olhamos o amor com alma focada
numa lente mais que inventada
almas amarrotadas
focadas em lentes reviradas
mãos seguras que nos seguram a luz que não perdemos
alisam chamas que não nos queimam
amamos
só o que queremos ver
focamos o que desfocado nos parece
desaparecemos num cik de óculos fabricados
e
numa lente reviramos o Sol
embalamos a alma
afastamos nuvens sem mãos que as agarrem
sem sombras indirectas
só numa mágica lente de alma
focamos o in focável
Numa lente... reviramos o Sol
Teresa Maria Queiroz- Novembro 2011
feito para lente de alma
empoleiramos uns nos outros
cristais de esperança
vão surgindo
num puzzle que nem sabemos fazer
compomos uns
endireitamos outros
lapidamos cristais finos
transparentes
gotas de água
esperanças molhadas
Lágrimas mascaradas
empoleirados, qual castelo de cartas
com cuidado
passamos entre frestas desses cristais imaginados
com cuidado
seguramos e não os deixamos cair
com cuidado !
construímos paredes de cristais agudos
aguados….
e os cristais estalam
parte-se um aqui , outro acolá
embaciam-se uns
estilhaçam-se outros
desaparecem
voltamos a erguer cristais
mais frágeis que nós
por aqui e por ali
erguemos outras paredes
límpidas
embaciam-se uns
estilhaçam-se outros…
cristalinos muros
fachadas lavadas…
buracos dispersos
cai a parede sonhada
Teresa Maria Queiroz - Outubro 2011
Foto - Teresa Amaro
rotos em correntes do meu ar
restos recortados num vento parado
romperam por ali
por aí saíram
andando em estradas alinhadas caíram em buracos rotos
recortados em verde
às avessas
caíram estrada abaixo
romperam buracos de vento
meu ar
meu sopro
rotos de correntes de ar
respiram-me
sopros de força
correntes de vento
romperam-me
tão fácil
tão frágil
tanto frio
rotos em correntes de um ar soprado
sem força que se sopre
romperam-me e por ali me saíram
caídos em buracos rotos
em cada respiro meu
em cada suspiro cortado
tão fácil
tão frágil
tão roto ....
Teresa Maria Queiroz - Outubro 2011
Foto Sonja Valentina
subindo degraus de anões
passando em frestas para o lado de lá
cega-me a luz
subo degraus dedilhando espaços
onde só cabem os dedos mais finos
sopro na sombra
subindo degraus de anões
enrolo-me numa bola escura
gigante
seguro-a nas mãos
cega-me a luz
dedilho persianas de luz
estilete que não verga
passeio com passos dedilhados
escondo-me na sombra enrolada
subo degraus de anões
sopro na sombra
num vento fininho
abano degraus de anões
Teresa Queiroz - Setembro 2011
foto Sonja Valentina
Passava os dedos como quem toca teclas de piano no muro alto Cantarolava baixinho porque não sabia cantar alto Os dedos davam-lhe as notas imaginadas, os murmúrios confortavam-lhe apertos na garganta . Olhava o muro alto, lá em baixo uma praia de pescadores, sempre a assustou aquele muro desequilibrado, nem percebe como ninguém cai dali abaixo, nem percebe como alguém caí assim …de si abaixo !
Tocava um piano imaginário , fazia sons de garganta .
Lembrava a praia , a areia molhada numa noite fria …quantos anos ? .. vinte ? …mais …talvez trinta ...
Lembrou barcos de pesca com pescadores encardidos do sol e do salitre , histórias de marés e de raia miúda , conversas noite fora , encostados a cascos frios… lembrou-se do “Mar à Vista” ….
Passeava encostada àquele muro que nunca entendeu , tocava as notas que sempre gostou de ouvir . E aquela cor , aquela cor de pescadores, encardidos de salitre, aquela cor, que se esbatia na sua memória, não lhe saía da cabeça .
Trauteava rock em teclas dum piano clássico, enorme! Desenhado por ela naquele muro baixo, desequilibrado, perdido no tempo amargurado , agora parecia-lhe tão pequeno , tão perigoso ….sentiu aqueles grãos de areia grossa, húmida, fria, sentiu-a assim, no final dos tornozelos …lembrou-se que era assim ...
Hoje dia estava mais cinzento. Ali, o tempo sempre foi cinzento… naquele dia, o cheiro do peixe fresco agoniou-a, impotente ao tempo …naquele dia as pedras grandes, da calçada que pisava , torceram-lhe os pés ….!!
Tocava piano, em teclas enormes, sem som, deixou de gargarejar sons antigos. Não pares de cantar , nem que seja baixinho, não te cales, não adormeças esses grãos frios de areia grossa , naquela noite gelada , tão passada…
Naquele dia, ali, mesmo ao cimo da praia dos pescadores, a tristeza do que nunca foi , toldou-lhe a voz , embaciou-lhe o olhar !
resolvi espelhar-me
assim...
resolvi diluir-me em pepitas de ouro velho
de fechadura cerrada
pintei-me de cor dourada
molhei-me em pincéis de cerda fina
resolvi diluir-me
assim...
umbigos desenhados
procurando-me
fechei-me em ouro
em ouro velho
numa fechadura dourada
espelhei-me para que se reflexem
resolvi abrir buracos em umbigos falsos
pintar com pincéis finos
assim...
riscos invisíveis de pepitas de ouro
encerrei-me num metal mole
dilui-me
moldei-me
assim ...
espelho-me só para que não me vejam
neste meu ouro velho
marcaram-me unhas recortadas
riscam-me este meu espelho
assim...
tocam-me à porta
não abro uma fechadura colada
dourada
não me abro
amoleci-me em ouro
assim...
pintalguei-me de umbigos falsos
dilui-me em metal mole
assim...
Teresa Maria Queiroz - Agosto 2011
Foto - Helena Lagartinho
E fumava todos os cigarros que conseguia encontrar, lembrando outros fumos , inspirava e expirava este , este que lhe chegou assim de nada , porque dizem que não há fumo sem fogo tentava encontrar a chama que se derretia num borrão aceso
Tantas vezes se perguntava se isto era só isto … não podia ser , e procurava razões nas mais pequenas brechas do dia
De noite revolta-se na cama
Amanhã seria um dia com a mesma luz , amanhã …já sabia o que seria o dia
Olhava o maço meio vazio , seria o segundo ? já não contava as horas para fumar cigarros onde o fumo se esquecia e nunca se desvanecia
Amanhã seria um dia , outro qualquer …de manhã iria ensaiar um sorriso, só porque dizem por aí, que de manhã se deve sorrir ao dia
Nem nunca percebeu porquê , quando as manhãs eram tudo menos menos sorridentes . E os cigarros , de manhã, nunca lhe souberam bem
Amanhã , se chegar … será que ainda conseguirá amar ? nunca se perguntou
Deixou de se revirar na cama
De pé seguiu caminhos que não estavam traçados, odeia caminhos traçados , detesta traçar caminhos
E na dúvida do amanhã , medida de tempo que nada lhe diz , pergunta.se… pergunta-se sempre…
estás aqui ?
segues ao meu lado ?
...não conheço quem me abraça , não conheço o seu som
estás aqui ? estás ao meu lado?
já não te oiço !
não te vejo ...
já não te sinto
nunca mais te senti ...
nem vejo a tua sombra
estás aqui ?
segues ao meu lado ...?
nunca mais te consegui tocar
assim como quem já se esqueceu do som..
abraça-me ..só porque te conheço
revira-me
dá-me voltas .... grita.me ou sussurra-me ...
não me morras
tal como prometes-te ...
não andas por aqui !
nunca mais te senti ao meu lado ....
já nem sombra me és
se calhar
eu nunca mais te quis
e asseio o teu abraço ?
só porque já não sei quem me abraça outra vez ...
embaciam-me os olhos
estás por aqui ? segues ao meu lado ?
não te cheiro
não te vejo
fizeste-te em nada
tal como um dia me prometeste que farias ....?
reviraste.me ...
não te oiço !
nunca mais te vi ...
deixei - te morrer... tal e qual como tu querias ...
abraça-me
só porque te conheço o afago ...
nunca mais te quero lado a lado .
Teresa Maria Queiroz
Julho 2011
foto - Sonja Valentina
desiguais se encostam
desiguais se destapam em fios de som
metálicos se enferrujam
desiguais se sentem
sem sentir o igual do tacto
desiguais se tentam enroscar
metálicos
gritam finos sons de cordas rijas
desiguais se amam em cordas
esticadas
desiguais se aconchegam
em cordas que vibram
desiguais se gritam
metálicos
não se olham
desiguais se tocam em notas de viola
desiguais se igualam
em desalinho se deitam
alinhados
encostados se amam
encostados se ouvem
desiguais gritam
metálicos
desiguais se misturam
em sons desabafados
deitados em tecidos amarrotados
desiguais se igualam
Dia 3 de Junho ---sexta -feira !! fim de tarde/noite -- apresentação do livro "Mergulho em ti ao Contrário", na Fábrica do Braço de Prata .... vão ver tudo ...livro , fotos, quadros e DVB !!!!!
Dia 3 de Junho ---sexta -feira !! fim de tarde/noite -- apresentação do livro "Mergulho em ti ao Contrário", na Fábrica do Braço de Prata .... vão puder ver tudo ...livro , fotos, quadros e DVB !!!!!
alisa-me com dedos que me tocam
desamachuca-me
assim devagar
desenruga um coração de rebuçado encarnado
alisa-me
desembrulha-me com dedos ásperos
trata-me bem
agora
mesmo que eu não mereça
adoça os teus lábios na minha cor
desfaz-me devagar
toca-me , canta-me !
alisa-me em beijos
acarícia-me agora
vês como está desbotado ?
vês como vai ganhando a tua cor ?
desamachuca-me !
embrulha-me no teu papel enrugado
cola-me a ti ...
com beijos de doçura
não me deixes cair
segura-me devagar
levanta-me!
alisa-me
pinta-me a tua cor !
trata-me bem agora ...
mesmo que eu nada mereça
desamachuca-me
mesmo que me enrugue
mas
trata-me bem ....mesmo que eu não mereça
é só quando mais preciso...
diluí-me ...
toca-me
embrulha-me
recolhe-me
e
leva-me contigo
Teresa Maria Queiroz / Maio 2011
Foto / Sonja Valentina
_É hoje o concerto! Temos bilhetes para um camarote !
_Quantas pessoas podem estar no camarote ?
_ Acho que cinco…
_Tens mesmo o bilhete do camarote? Onde é que o arranjaste ..?
_ Não te digo !! tenho !! e é hoje ! …rias-te …
Esperávamos há meses pelo concerto do Gilberto Gil , ao vivo no Coliseu . Ouvíamos todas as músicas, vezes e vezes sem conta.
O “Realce”, rolava no gira-discos, sempre para o mesmo lado e sem tonturas ! Ouvíamos e dançávamos, horas seguidas, tardes inteiras. Sabíamos as letras de cor.
“Realce …..Quanto mais porpurina …melhor …l ala la ….”
Pulávamos e respirávamos tudo o que era positivo naquelas músicas que só nos faziam crer que tudo, mesmo tudo e apesar de tudo …iria ficar sempre bem .
_ Tens mesmo os bilhetes ??!! Eu nem acredito
- É só um bilhete, só um , parva ! É um camarote …
_E quem é que vai ?
_ Vamos nós todos …
- Mas somos mais que cinco….
_Não faz mal, vais ver que cabemos lá todos .
Doía-me a barriga , a espera dava-me cólicas e formigueiro na boca do estômago… as horas nunca mais passavam !
_ Põe o “Realce” outra vez …
O disco dançava connosco, sem saber o que nos fazia, rodava e rodava . A agulha gasta dava mais carácter aquela voz clara.
_ Jantas cá ?
_ Tenho que telefonar para casa …. A minha mãe vai já dizer que não …mas enfim …não vou perder este concerto nem por nada .
Peguei no auscultador do telefone , era preto e reluzia … disquei os números , 3---1---3---7---6---, naquela altura os telefones tinham poucos números e eu gostava de prender o disco com força e ouvir o ruído da marcação do número.
_ Está …sou eu mãe…Olha ..? Posso jantara aqui … e ir ao concerto do Gilberto Gil , logo à noite ?
_ Olá filha, podes. Claro que podes, tem cuidado. Vai ver o Gilberto Gil que é muito bom. Por favor não venhas tarde.
_Posso mãe??!! Posso mesmo ? – Está bem eu não vou tarde , prometo . Beijinho mãe, obrigada .
Desliguei o telefone e nem queria acreditar …
_ Posso ir ! A minha mãe deixa-me, e posso jantar cá. A que horas vem a tua mãe ?
_ Sei lá, vem sempre tarde …fazemos uns ovos mexidos e vamos , temos que lá estar cedo .
_Embora até ao café ver quem lá está …temos lugar para cinco !
_para cinco…ou mais !! quantos couberem ….
Ríamos sem parar.
Chegámos devagar porque não corríamos , quase nunca corríamos .
Chegámos como quem não quer a coisa.
_Sabem que mais ??? temos um bilhete para um camarote no Culiseu , para ver o Gilberto Gil , hoje …!!
Olharam todos para nós, como se nos estivessem a ver com cabeças de porco !
_ A sério ?!
_ Sim …a sério… quem é que quer vir ?
Todos queriam ir , claro . Mas o bilhete era só para cinco …
_ Os camarotes só têm cinco cadeiras …
_ Não faz mal , ficamos uns em cima dos outros …ficamos em pé !
_ Por mim tudo bem , se nos deixarem entrar …
_ Mas como é que tens o bilhete ?
_ Aranjaram-me …
_Quem ?
_ Um amigo da minha irmã , que conhece o Gilberto Gil ..
_ Mentirosa ! És tão mentirosa …ria-me...
Ninguém acreditou
Dizias isto com um ar de quem não dá importância nenhuma a coisa nenhuma .
Os rapazes olhavam uns para os outros com olhos que falavam …. _ arranjas as cenas para logo ?
_ Ok arranjo, do melhor …
_Ok , mas vê lá o que é que arranjas , não quero gajos a mandarem-se do camarote lá para baixo ! Riam-se ....
Ouvia e não queria saber se queria ouvir ou não.
“ Seja o que Deus quiser, é um concerto …e vou querer rir também !” pensava sem fazer barulho .
Nem comemos nada de jeito, fomos todos fazer ovos mexidos com batatas Pála- Pála , engolimos uma comida sem sabor .
O disco continuava a rodar …sem parar, as colunas estavam no máximo e dançávamos de prato na mão , depenicando bocadinhos de ovo e batatas fritas .
Desacertava-mos os passos ao som dum reage tão suave , tão envolvente …
Apanhámos o 44 que nos deixava na Av. da Liberdade, depois era um instante até ao Coliseu .
Quando chegámos à porta, já se amontoava uma multidão que ansiava por entrar por ali dentro, ainda faltavam algumas horas para o concerto.
Bebemos cerveja num café , mesmo ali em frente , bebemos cerveja até as portas , do Coliseu, abrirem …nem sei quantas cervejas bebemos .
Apagávamos os Sgs Filtros nos gargais das garrafas de cerveja , os rapazes guardavam as pratas dos maços de tabaco , mais tarde faziam os cachimbos .
Entramos todos no meio dum enorme empurrão, quase que não havia controle nas entradas , e nós só queríamos ouvir o “Realce” e o, …”no woman no cry……” ao jeito do Bob Marley , cantarolávamos pelas escadas cima.
Cabíamos todos no camarote, eu fiquei “à janela” , as meninas à frente para verem melhor , os rapazes atrás ..para arranjarem “as coisas” .
Fumávamos cigarros ,…. Naquele tempo fumava-se nos concertos do Coliseu.
O Gilberto Gil entro no palco, as luzes acenderam-se, eu hipnotizei-me , imediatamente, pela enorme estrela dourada , pintada na sua cabeça , quando se voltou …vi que tinha uma Lua do outro lado
As luzes faziam com que brilhassem , faziam reflexos de pequenos cristais de caleidoscópio , eu olhava fascina … e …ia fumando o que me passavam para as mãos , cada vez mais feliz , embriagava-me no som , nas letras e naquela estrela virada para mim .
Não me voltava para trás , só sentia o calor de todos os corpos que se moviam perto de mim , ao som da música . Entre odores e fumo, não sentia mais nada , só o ritmo e o fascínio das luzes .
As luzes faziam brilhar a Estela e a Lua … que pareciam enormes …
Sem me aperceber , batia palmas sem ritmo …
Não acertava o compasso, as mãos não obedeciam ao ritmo da música que se instalava dentro de mim…
olhando para as pessoas , lá em baixo, pela “ janela “ do camarote, via toda a gente a bater palmas num compasso que já não era o meu , as luzes começaram a brilhar com mais intensidade….
Ia batendo palmas , assim como sabia , fumava o que me passavam para a mão , entre cigarros e cachimbos ..Descompassava-me, cada vez mais.
Apercebi-me que me assustava, que já não compassava, que já não me sabia obedecer , que já não “mandava” nos meus gestos, e a partir daquele momento…nunca mais fumei o que não sabia .
Depois de vários retornos ao palco, o Gilberto Gil acabou o espectáculo. Assobios que pediam mais , e mais .
Palmas compassadas que não ritmavam com as minhas .
Saímos no meio duma massa de gente feliz, estavam felizes , pareciam felizes… todos se riam .
Eu deixei de rir, assustada com o meu descompasso,
Voltámos para os Olivais. No caminho cantavam as músicas que ouviram no concerto, eu …estava calada , olhava-os com os olhos muito abertos …esperando que passassem as horas e que me conseguisse ritmar outra vez .
Demorámos imenso tempo a chegar aos Olivais , a mim pareceram-me horas infindáveis , as paragens estavam cheias de gente , que bem nos tinha sabido um carro naquela altura , mas carros ..não os havia assim para toda a gente .
Ríamos por isso mesmo e por tudo e mais alguma coisa
Chegámos ao “prédio” alto, nos Olivais , eu nem sabia como iria para casa …
Ficámos a “matar” o resto do tempo sentados nos degraus das portas , continuavam a fumar …. Eu não queria fumar mais nada . Já não me ria, já não me dava vontade de rir …
_ Vamos até minha casa? Ficamos lá um bocado…
_ Está bem , eu nem sei como vou para casa agora , tenho medo de ir sozinha…tenho que atravessar o Vale do silêncio ….a esta hora …e já foram todos para casa…
Entramos em casa, era mesmo ali, no R/C , do prédio alto, nos Olivais .
Sentimos vozes e luzes na sala do sofá amarelo . Falavam brasileiro, parecia brasileiro , e naquela altura era tão bom ouvir falar brasileiro…
Ouvimos o som baixinho duma guitarra … alguém cantava , assim com uma voz exactamente igual à que tínhamos estado a ouvir durante horas,
Olhámos uma para a outra , incrédulas, abrimos a porta da sala do sofá amarelo .
E sem acreditarmos, vimos quem cantava assim tão suavemente. Sentado no sofá amarelo, acompanhado com mais duas ou três pessoas , estava o Gilberto Gil, horas depois do espectáculo, a tocar ali, naquela casa no meio dos Olivais.
_ Tu estás acreditar no que estás a ver…?
_Não …não estou
Desatámos a rir … mas porque raio é que o Gilberto Gil ali estava ….?!
_-tu sabias que o Gilberto Gil vinha para tua casa ?
_ Eu não !?
“..não …não chore mais …. No woman no cry…..”…. os dedos brincavam com as cordas da guitarra .
Parecia não estar a acreditar no que via
_ Mas olha lá …que raio de coisa esta …mas porque raio está o Gilberto Gil em tua casa …?
“ …quanto mais purpurina …melhorrr….” e recordava a música , e a estrela agora já não brilhava tanto..nem a lua , eram douradas , pintadas a ouro .
_ Espera …vou perguntar à minha irmã … o que se passa aqui …
“realce…..realce….quanto mais serpentina melhorrrrr….”…
.
o susto já me tinha passado, e meio embasbacada , sentava-me na pontinha do sofá amarelo , ele sorria-nos com uns dentes tão brancos e com uma voz que nem se explicava ,,,,
“..não desepera quando a vida fere fere …realce …realce quanto mais serpentina
melhorrrr….quanto mais purpurina ..melhorrr …”
_ Já sei ….já perguntei à minha irmã , parece que o motorista do Gilberto Gil , é amigo da minha irmã…e resolveram vir cá para casa no fim do espectáculo ….
Olhei com os olhos muito abertos ….Desatámos a rir às gargalhadas … sempre queríamos ver se amanhã, os outros acreditavam em nós …
_ hahaha , amanhã ninguém acredita em nós !
Ríamos e ríamos e começávamos a cantarolar as músicas que ele nos tocava , assim como um presente que nos dava , entre cervejas , cigarros de fumo e gargalhadas espalhadas no meio do som .
_ Eu nem acredito … phá! Mas que raio de coisa…e tu sabias disso
_ Eu não …
E assim ouvimos um mini- concerto , depois dum grande concerto, o mais inesperado da minha vida .
Ficámos por ali sentados no chão, encostados ao sofá amarelo , até o Sol nascer e a Lua adormecer...